sexta-feira, 5 de fevereiro de 2010

UMA FLOR CHAMADA MELÍFERA




Meu pai era um biólogo nato, amava os animais e as plantas. Desde menino estudou na Escola Agrícola de Barbacena. Era elegante, gostava de usar ternos claros e já revelando indícios da personalidade depressiva, adquiriu imenso terreno, mais afastado. Cercou a casa com todas as espécies de plantas tanto frutíferas como ornamentais. Como criava abelhas, escolheu especificamente uma chamada Melífera. Como o próprio nome diz, ela exalava um perfume adocicado que atraía abelhas e insetos que iam dela retirar o néctar para fazer o delicioso mel. Ele cercou toda a propriedade com esta flor.Elas floresciam , em junho/ julho, dando cachos brancos que cobriam toda a vegetação Inundando toda a nossa casa de um perfume inconfundível.
Papai , juntamente com meu avô, construíram nossa casa de modo que recebesse o sol da manhã e como ficava num terreno alto, todas as tardes contemplávamos os maravilhosos e cada dia diferentes pores- do-sol decantados em prosa e verso e pintados por artistas famosos que escolheram nossa cidade para viver como o famoso pintor francês Emeric Marcier.
A rua acima de nossa casa chamava-se Alameda George Bernanos em homenagem ao também escritor francês que ali viveu e morreu.Ambos os franceses, como uma grande leva de outros artistas, fugiram da Europa por causa da 2ª Grande Guerra Mundial.
Meus pais contavam que este famoso escritor, passava pela alameda, caminho sombreado de enormes árvores, com seu cavalo, chapéu, enorme capa preta que cobria parte do lombo do animal, sempre seguido de um cão. Tal alameda levava ao caminho chamado Cruz das Almas que finalizava na casa do escritor. Casinha modesta mas bucólica, cercada de casuarinas.Ali ele viveu, escreveu vários poemas e livros destacando um que fez Barbacena ser conhecida em toda a Europa: Le Chemin de la Croix-des-Ames -O Caminho da Cruz das Almas. Ao morrer, o Governo francês fez o traslado de seus restos mortais para a França.
Havia muita semelhança entre a vida destes enigmáticos e excêntricos artistas e a de meu pai, figuras solitárias, personalidades depressivas que optaram por viver em lugares isolados, cercados de densa vegetação.
Todos os dias, vestido no seu terno, sempre com um guarda chuva pendurado nas costas, víamos papai descer o Morro das Pedras, onde morávamos, rumo ao trabalho e ficávamos, acenando e dizendo: vai com Deus e ele acenando até desaparecer no final de outro morro.
O terreno de nossa casa ocupava todo o quarteirão. As pessoas jogavam entulho, este ia se acumulando , por causa dos perigos, não nos era permitido andar descalços e se o fizéssemos e fôssemos descobertos, levávamos surra.
A casa dos nossos avós maternos próxima à casa de nossa tia, eram dois lugares que adorávamos ir, onde fazíamos travessuras, junto com os primos. Pontualmente, após as aulas, passávamos por lá. Além dos folguedos, tinham as coisas gostosas das casas da avó e da tia e podíamos até chupar picolé e andar descalços, longe da reprovação dos pais.
E assim, transcorria nossa infância: brincando de pique, chicotinho queimado, cantigas de rodas, caminhando pelos pastos colhendo gabirobas e tantas outras frutinhas do campo, nadando, pegando peixes e girinos nos córregos e pântanos naquele tempo, ainda cristalinos.
Mas um acontecimento fatídico mudou toda nossa infância, modificou toda nossa vida.
Em julho de 1959, um dos meus irmãos, com 10 anos de idade, descalço, ao descer de um abacateiro, espetou o calcanhar num arame farpado e enferrujado, na casa da vovó.
Começou o processo inflamatório, mesmo sentindo dores fortes ele nada disse em casa, para nossos pais não saberem que andara descalço.
Naquela época, não havia televisão, muitas informações ou recursos. Não fora conhecido nenhum caso semelhante para que pudesse servir de alerta.
Um tétano galopante ceifou a vida de meu inseparável irmão . Seu caixão, sua coroa de flores, as flores que as pessoas carregavam foram as melíferas já que ele faleceu em Julho e elas estavam floridas. Enquanto seu corpo era velado, outro nosso irmão era batizado.
O enterro seguiu, à moda antiga, atravessando a cidade em direção ao cemitério. Todos estavam consternados, diante daquela morte prematura. Os comerciantes, semicerravam as portas, em sinal de respeito.
Vi minha avó chorando muito, se culpando, já que ele machucara na sua casa ao subir no abacateiro para apanhar abacates, a pedido dela.
Após esse dia, meu pai caiu em depressão profunda. Fomos proibidos do que tanto amávamos, ir à casa de nossos avós e primos. As caixas de abelhas foram abandonadas e invadidas pelas formigas. Ficamos cada vez mais isolados, dentro daquela capoeira que era nossa casa. Meu pai parou de se cuidar e ao retornar ao trabalho, ia cabisbaixo e soturno.
E, ele que não nos deixava quebrar um galho de planta, nos aniversários subseqüentes da morte, quando as melíferas floresciam e inundavam todo o ambiente com o seu perfume, ele aos poucos, foi cortando todas, para fazer cessarem as lembranças da morte associadas ao perfume das flores. E continuou a cortá-las quando elas ainda teimavam em brotar. E cortou-as até extirpá-las.
Muitos anos se arrastaram. Meus pais nunca mais foram os mesmos. Nossa vida nunca mais foi a mesma...
Nossa mãe faleceu aos oitenta anos, coincidentemente, no mês de Junho. Meu pai, eu e demais irmãos, velávamos o seu corpo até que, misteriosamente, inexplicavelmente,inusitadamente, apareceu dentro do caixão, nas mãos de mamãe, uma certa flor chamada Melífera.
Graça Leal
adocaobh@gmail.com WWW.adocaobh.blogspot.com
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Dombéia:
Arvoreta da família das Sterculiáceas, quando adulta chega a atingir entre 4 a 6 metros de altura, possui folhagem belíssima, aveludada, de grande tamanho (12 a 20 cm de diâmetro), fazendo um bonito contraste com outras vegetações.
Além disso, é perfumada e melífera, atraindo muitas abelhas e borboletas. A propagação se faz facilmente por estaquia da ponta de ramos.
Necessita de luz solar plena, prefere clima quente e úmido e solo argilo-arenoso. Floresce no fim do inverno e começo da primavera.
São encontradas variedades com flores brancas e róseas.
Planta apícola, ornamental
É originária da África do Sul
Floração de junho a outubro. Também conhecida por astrapéia-rosa, abelheira, aurora...

Um comentário:

  1. Boa noite, fiquei sensibilizado com o texto. Encontrei-o enquanto pesquisava sobre Georges Bernanos. Conhecí bem a região descrita; Cruz das Almas. Apesar de muito mudada, ainda há trechos reconhecíveis do que descreveu no texto.

    É possível que nos conheçamos, conhecí, efetivamente, essa região e a casa de George Bernanos em 1969, mas já tinha sido levado lá em 1962, mas era muito pequeno e não me recordo de referências, mas me lembro da paisagem, e de uma lagoa existente no local.

    Enfim, parabéns pelo texto.

    Eduardo

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